PADRE TONINHO
Se algum desavisado perguntar pelas esquinas do Bixiga como encontrar o Padre Antonio Aparecido da Silva, provavelmente não terá sucesso em sua busca.
Mas, se o religioso for procurado pelo nome de "Padre Toninho", não faltarão voluntários dispostos a encaminhar o forasteiro à Paróquia Nossa Senhora da Achiropita, onde funciona a Pastoral Afro e o Centro Cultural Atabaque, frutos da militância do pároco. Padre Toninho é figura mais que ilustre do bairro onde se come feijoada, regada a vinho e ao som de forró. Ele nasceu em Lupércio, uma pequena cidade no interior de São Paulo, em 28 de novembro de 1948, data que consta nos registros oficiais, mas, aparentemente, teria nascido um mês antes; detalhe que não tem importância diante de sua trajetória. Foi ordenado padre em 1976. Por dez anos foi pároco da Igreja Nossa Senhora da Achiropita e hoje é o influente Diretor Provincial da Congregação Padre Orionitas. Mas é como um dos mais atuantes e formidáveis agentes de combate à discriminação racial que Padre Toninho se destaca. Ele foi um dos idealizadores das missas afros, onde os rituais católicos misturam-se às tradições afro-brasileiras, formando um comovente ritual, capaz de sensibilizar até mesmo aqueles que não nutrem muita simpatia pela religião católica.
Portal - Quando e como surgiu a idéia da Missa Afro?
Padre Toninho – Na década de 70 os movimentos sociais estavam em evidência. A luta pela superação do regime militar marcava um momento forte dentro do país. Neste contexto, o movimento negro começava a se reorganizar na sociedade civil. Eu e mais alguns jovens padres negros, recém ordenados, começamos a entender que este movimento deveria também ter seu braço na igreja, pois a discriminação que os negros sofriam na sociedade civil, também era vivida dentro das igrejas. Entendíamos que se a igreja não acompanhasse as conquistas dos negros na sociedade civil, ela, que deveria estar à frente, ficaria para trás. Naquela época, não víamos negros nos primeiros escalões das instituições civis, nem tampouco nos primeiros escalões da igreja. Era evidente que para superar esse problema deveríamos iniciar um trabalho de conscientização.
Portal – E quem eram essas pessoas que se reuniam com o senhor?
Padre Toninho – Tinha o Padre Mauro Batista, que era professor da Universidade Católica e atendia a comunidade carente da Vila das Belezas, na região de Santo Amaro. O Padre Edir Maria, de Lins, que desenvolvia seus estudos em São Paulo.Também contávamos com o famoso e saudoso Padre Batista, que trabalhou na Catedral da Sé. No início, contamos com o apoio do padre comboniano [designação dos adeptos do missionário Daniel Comboni, que entre outras causas defendia a salvação da África pela África] Heitor Frizoti, que apesar de branco assumiu a causa negra de corpo e alma.
Portal – E quando o movimento realmente se cristalizou?
Padre Toninho – No final da década de 70. De 1979 para 1980, começamos a fundar os agentes de pastoral negros (APN’s). A partir daí começamos a criar uma sólida estrutura.
Portal – Quando e onde aconteceu a primeira missa afro?
Padre Toninho – A primeira teve o nome de Missa dos Quilombos e aconteceu em 1981, na Praça do Carmo, em Recife. A missa foi presidida pelo bispo negro Dom José Maria Pires e as músicas foram compostas por Milton Nascimento.
Portal – Porque em Recife?
Padre Toninho - Quando em 1695 Domingos Jorge Velho matou Zumbi, ele o decapitou e levou sua cabeça para expô-la na Praça do Carmo, que na época era a principal praça de Recife, onde morava o governador da província de Pernambuco. Entendemos que por essa razão o local era simbólico.
Portal – E como a cerimônia foi estruturada? De que forma os elementos afros foram introduzidos?
Padre Toninho – Num primeiro momento a prioridade era trabalhar a idéia da visibilidade do povo negro. Havia uma ideologia que pregava a ocultação do elemento negro da sociedade brasileira. Ora, o Brasil é negro em todos os cantos e naquela época, estatísticas absurdas diziam que éramos apenas 7% da população! Portanto, voltamos nossas atenções para este ponto.
Desta forma, a missa abre com a mensagem da chegada: "Estamos chegando, vocês não nos vêem, por que estamos nas senzalas, nos porões, nas favelas, nas periferias e nos morros". Esta é a idéia da entrada. "Vocês não nos vêem por que não querem, mas nós estamos aqui".
A parte da leitura foi feita em cima de êxodus, capítulo 3, onde se lê: "Eu ouvi o clamor de meu povo e sou solidário com ele". Deus é nosso! Deus está com os pobres e negros, pois está justamente ao lado daqueles que sofrem. Essa foi a liturgia da palavra.
No ofertório, trabalhamos com a idéia de que só podemos oferecer a Deus aquilo que é nosso, pelo qual lutamos, o que construímos. Se oferecermos algo que não possuímos, roubado de outros, essa oferta não será legítima. Portanto, as missas celebradas até agora foram falsas, pois as pessoas ofereciam as coisas que roubavam dos negros, do suor e do trabalho do negro, que eram apresentadas como coisas de brancos. Mas quem produziu aquilo? Foram os negros durante a escravidão. Sendo assim, é a primeira vez que está sendo feita uma missa válida, daí a idéia do ofertório abundante. Oferecemos para Deus aquilo que produzimos: pipoca, bolo de fubá, pão, frutas, etc. Nada que tenhamos roubado.
Na parte final, Consagração e Agradecimento, passamos a idéia que o quilombo representa a paz, por ser o local onde os negros abriram as portas para índios e brancos pobres, num regime alternativo onde havia o respeito pelas diferenças. Na verdade o quilombo é páscoa. Quilombo, páscoa da ressurreição.
Estes são os principais pontos da cerimônia.
"Coincidentemente, tempos depois, a igreja lançou a idéia da inculturação, que seria trabalhar a fé a partir da cultura de cada povo. É natural que a idéia atendia plenamente nossos propósitos: trabalhar a fé resgatando nossa cultura. Sendo assim, adotamos os símbolos afro-brasileiros e os expomos nas vestimentas, nos cantos, nos ritmos, enfim ligando-os à celebração. Esta é a idéia".
Portal – A religião seria o caminho ideal para a superação das diferenças entre negros e brancos?
Padre Toninho – As religiões são patrimônio de toda a humanidade. O elemento mais comum entre os humanos talvez seja a linguagem e o sentimento religioso. A religião tem uma dimensão universal. Não encontramos nenhum povo que não tenha sua religião, sua crença. Portanto a linguagem religiosa é universal. Daí vem uma grande responsabilidade sobre os agentes que operam a coisa da religião, ou seja, os líderes religiosos: sacerdotes, mães de santo, mestres budistas, yalorixás, rabinos, pastores, enfim, todos têm a responsabilidade de fazer com que este sentimento comum a todo universo seja valorizado. Os líderes têm duas opções: transformar as diferenças em uma arma para se atacarem ou num bonito instrumento de paz. Para que isso possa de fato acontecer, é preciso que aja abertura, que as pessoas não olhem com olhar restrito, pensando apenas em sua própria religião. É preciso olhar de maneira ampla, valorizando a religião do outro. Não tenho dúvidas que a religião tem o papel de unir as pessoas, e hoje mais que nunca, é necessário que assuma esse papel.
Portal – Durante a escravidão, os negros eram proibidos de entrar nas igrejas. Hoje, temos padres negros e vemos a comunidade assumindo e participando ativamente dos rituais da missa. Temos aí uma evolução?
Padre Toninho – Realmente tem havido uma evolução nas igrejas. De fato, no período colonial das Américas, os negros eram proibidos de entrar nas igrejas, embora fossem eles que as construíssem. O Papa João Paulo II, aludindo a este fato no Documento da Assembléia de Santo Domingo, produzido no Caribe, em 1992, se refere a esta fase com grande pesar e pede desculpas à comunidade negra, dizendo que homens e mulheres falsearam os ensinamentos de Jesus Cristo, pois não é possível que quem conheça o evangelho admita a escravidão e não permita que seu semelhante participe de uma mesma celebração. Foi justamente isso que aconteceu com os negros que foram proibidos de participar das igrejas que eles construíram.
A Igreja Católica, a partir do Concílio Vaticano II, em 1960, deu uma verdadeira guinada em termos de conceito e compreensão. Abriu as portas para se trabalhar com certas particularidades que não eram tratadas, como a questão da mulher. Não tenho dúvidas que a possibilidade da mulher vir a ser sacerdotisa na igreja católica seja apenas uma questão de tempo. A postura de não admitir que uma mulher seja ordenada está com os dias contados. É irracional. Uma instância como a igreja que prega a fraternidade e igualdade, não pode determinar que a mulher não possa ser sacerdote apenas por ser mulher. É incoerente. Esta proibição desaparecerá, assim como desapareceu a proibição aos negros. Até aproximadamente a década de 60, eram pouquíssimas as ordens e dioceses que admitiam negros com vocação religiosa.
Hoje já não existem mais essas barreiras. Digo, porém, que isto não foi uma abertura gratuita, não foi um presente. Assim como a abolição foi o resultado da luta dos escravos, da mesma forma, a atual presença do negro nos postos de frente das igrejas católicas e protestantes, é também resultado de nossas lutas. Graças a isso, podemos comemorar o fato da CNBB reconhecer oficialmente a Pastoral do Negro no Brasil. Acredito que os negros organizados no candomblé, na igreja católica ou quaisquer outras vertentes, devam estar unidos no respeito e sobretudo na busca por cidadania. Este sim, um ponto comum onde todos têm que se encontrar. Somos brasileiros. Temos nossa origem na África, mas assumimos este país e lutamos por ele.
Portal – Esta postura é evidentemente política, não?
Padre Toninho – De fato é uma atitude eminentemente política. Estamos convencidos que devemos trabalhar com a recuperação da identidade, pois a atitude de um povo está diretamente ligada a sua identidade. Enquanto não reconhecer aquilo que sou, não conseguirei lutar. Não conseguirei me impor. Não conseguirei conversar com o outro de igual para igual. A libertação e conquista da cidadania do negro ocorrerá apenas quando ele olhar diretamente nos olhos de seu interlocutor, enquanto ele abaixar a cabeça, não conseguirá se impor. Só conversamos de igual para igual quando temos a certeza e convicção daquilo que somos. Quando assumo minha identidade, que vem da auto-estima, concluo que não sou nem maior nem menor que os outros, sou um ser humano, com os mesmos direitos de todos. Esta auto-estima começa na infância. Por isso, junto com a missa, temos os batizados afros, onde as crianças vêm trajadas e penteadas à moda africana, para que sintam, desde cedo, orgulho da África, que deixará de ser uma terra estranha, e sim sua pátria de origem, de seus antepassados. Trabalhamos então com duas dimensões, uma da identidade e outra da realidade, com a consciência da realidade.
Portal – O Senhor apresenta traças de líder político e religioso, os dois se mesclam?
Padre Toninho - Os dois se misturam, sim. O que é a religião? No fundo, é uma mediação que quer levar as pessoas a consciência que são filhos de Deus e portanto com direitos garantidos, como dignidade. A religião deve ajudar na recuperação desta dignidade. Nesse sentido, a figura do religioso e do político, no amplo sentido desta palavra, se encontram. Não a religião apenas como religião, mas também como objetivo, pois ela nasce com objetivos, ela não pode ser neutra. No cristianismo significa fazer uma opção por aqueles escolhidos por Jesus, ou seja, os pobres. A igreja portanto é partidária, e seu partido é o dos pobres. E entre nós quem são os mais pobres? São os negros e mais um grande número de pessoas que vivem na exclusão.
Portal – Fale-nos sobre o encontro nacional de padres negros, que aconteceu em Aparecida, em novembro do ano passado.
Padre Toninho - A comunidade negra esta ciente que é preciso ocupar os espaços. Exatamente por estarmos convencidos disto é que percebemos que, embora Nossa Senhora Aparecida seja solidária conosco, inclusive na cor, pouco se trabalha em Aparecida do Norte a questão do porque Nossa Senhora é negra. Se foi exatamente num momento de grande dor no vale do Paraíba, entre Rio e São Paulo, onde existiam grandes fazendas com milhares de escravos, que ela aparece, naturalmente não foi uma aparição mágica e sim como a mostrar onde estava a ferida. Nestes grandes latifúndios cuja economia prosperava às custas da exploração do povo negro. Existe então essa leitura teológica, de fé. Pensamos então em realizar ali, no mês de novembro, já como preparação às comemorações do Dia Nacional da Consciência Negra, este encontro para a troca de experiências entre os padres negros. Gratificante é saber que o interesse no encontro cresce a cada ano. O objetivo é plenamente alcançado, pois resgatamos os elementos culturais africanos, passando para a comunidade nacional a importância de associar a cultura aos anseios da população através do elemento religioso.
Portal – O Professor Milton Santos diz que mudanças sociais somente são possíveis onde há conflito. É correto, pois quando se ameaça quem detém o poder espera-se uma reação. Dentro da igreja isto também ocorre?
Padre Toninho - Quando falei anteriormente que nossas conquistas dentro da igreja vinham das lutas, inclua-se aí o conflito. O professor está correto. Em termos de igreja diria que há grandes conflitos entre o trabalho feito a partir da comunidade negra e o "staff" religioso, de modo geral. As igrejas protestantes que se abrem à realidade negra e procuram tirar avanços disto, deparam-se com uma grandes dificuldades por parte de sua cúpula, que vão contra elas, Na católica não seria diferente, o conflito é permanente. Em 1992, no 8º Inter-Eclesial da CEB’s (Encontro das Comunidades Eclesiais de Base), em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, houve um momento de forte conflito, quando os negros presentes, incluindo representantes dos cultos afros, tiveram que se impor. Foi um momento terrível, onde microfones eram arrancados à força e os ânimos estavam realmente exaltados. Outro exemplo foi a Campanha da Fraternidade de 1988, para conseguirmos que ela abraçasse a causa negra, foi necessária muita luta e pressão da comunidade. Até a missa afro, mesmo contando com a anuência do papa, ainda encontra resistência de muitos padres, que não a aceitam, gerando momentos complicados. Veja então que é uma luta constante, altamente conflitiva.
Portal – E quais são as perspectivas de continuidade destes trabalhos. Os novos seminaristas abraçam esta idéia?
Padre Toninho – Percebemos que vem ocorrendo um aumento muito interessante no número de seminaristas que vêm de ambientes populares e, portanto, de família negras. De 1979, quando comecei a lecionar, até hoje, não há paralelo nesse crescimento. Naquela época, éramos um ou dois em cada turma, "moscas no leite". Hoje temos 40% de seminaristas de origem africana, de tal maneira que já na faculdade são organizadas agremiações, organizações e grupos específicos de seminaristas negros! Acredito que o futuro está assegurado, pois enquanto nós começávamos a trabalhar com estas questões após a ordenação, a nova geração já trabalha com isto bem antes. Já se formam com uma consciência bem ampla de negritude, tanto que quando se ordenam, as missas de ordenações são missas afros. Acredito que seja um movimento sólido, que veio para ficar. Viajo sempre para trabalhar com grupos que estão surgindo, aqui no sul do Brasil, devido a meu trabalho na Ordem, e no Cabo Verde, na África. Reservo sempre parte de meu tempo para fortalecer estes grupos, como o Atabaque, aqui mesmo de nossa paróquia, que elabora as coisas que vão emergindo e transforma em subsídios, devolvendo para a comunidade.
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